Do Desastre ao Triunfo

variação, ondulação e vibração.

sábado, setembro 29, 2007

Choques culturais no primeiro dia de Festival do Rio

Nada como um Festival de cinema para reviver um blog...

21/09

O primeiro filme escolhido para começar a maratona foi O Sol de Alexander Sokurov, numa tentativa de fazer as pazes com um diretor que até então ignorava após a traumatizante experiência com Arca Russa, seu filme mais importante, visto por mim numa época em que o cinema que tentava ir além de sua própria narrativa e seu tempo narrativo com planos seqüências intermináveis (no caso de Arca Russa com apenas um único plano durante o filme inteiro) e um hermetismo, na época, incomodativo, era visto por mim, vergonhosamente, como mau cinema. E para reafirmar tal opinião, tinha na ocasião um discurso pronto que achava argumentadíssimo (mas que de tão radical e extremista acabava por desvirtuar-me até da oportunidade de apreciar as belas imagens que, no caso do filme do Sokurov, hoje me encantam na lembrança por seu barroquismo e cores artificiais) e inspirado no autor do único livro de cinema lido até então “Manual do Roteiro” de Syd Field: “filme pretensioso, chato e vazio, onde nada acontece e que ignora os elementos primordiais do cinema como montagem e roteiro”. Tudo uma falácia para não assumir minha falta de refinamento para adentrar na avalanche intelectual e metafísica do cinema pós-moderno. Agora, já crescidinho e apaixonado pelo cinema abstrato de Van Sant, Assayas, Kiarostami e tantos outros, ver com outro olhar o cinema de Sokurov pareceu-me um desafio reconfortante, mas que acaba por decepcionar ao final da projeção de seu O Sol. O filme, que recria a vida do imperador Hiroito durante os términos da Segunda Guerra e durante a ocupação americana nas terras japonesas, começa bem dentro das sombras e penumbras de um palácio imperial, num microcosmo distanciado do grito das bombas e sirenes que explodem do lado de fora. Lá dentro Hiroito é um homem solitário, estuda biologia, compara a cabeça de um siri com uma máscara de samurai, escreve cartas para parentes e desmistifica sua suposta divindade, num belo diálogo com um dos seus criados. Ainda assim, o filme amarga uma leve sensação em encenação constante que de tão minuciosamente calculado, não fosse por sua bela fotografia, lembraria um teatro filmado, o que é um tiro no pé de um filme que pretende ser naturalista. O contato com o general (e o inevitável choque cultural) é embaraçoso, inutilmente pausado, funcionando apenas para observarmos agora Hiroito não apenas como um humano (“como qualquer outro japonês” como diz ser) senão como um pateta desastrado com semelhanças à Charles Chaplin, fato que só não fica mais despropositado por causa da excelentíssima atuação de Issey Ogata como o imperador japonês. Acho que minha reconciliação com o diretor russo terá que ser com uma revisão de seu Arca Russa. 4,5/10


O choque cultural reaparece no segundo filme do dia, o chinês Luxury Car, somado com um choque entre gerações diferentes. Vencedor do “Um certo olhar” do Festival de Cannes do ano passado, o filme nos conta a história de um professor do interior que vai para a cidade grande para reencontrar sua filha e buscar seu filho desaparecido para desejo de sua mulher já doente. Visualmente muito interessante (característica usual do novo cinema chinês, cada vez melhor em criatividade e técnica, com uma nova geração para se acompanhar) e com todas as constantes do cinema oriental em geral: olhares, emoções contidas e sofrimentos relevados, o filme ainda elabora algumas reflexões sobre como a modernização tem afetado as estruturas políticas e sociais da China, modificando abruptamente a identidade do povo chinês. No entanto, falta em Luxury Car algo que o transcenda de sua narrativa fechada e até desfocada (recorrendo à utilização de uma mini trama de vingança totalmente desaproveitada) chegar intrinsecamente no espectador (o que só consegue quase fazer quando foca na relação pai e filha, superficialmente explorada). No tocante dos problemas chineses (e também universais) por conta da globalização não atinge o grau de perfeição e complexidade que Jia Zhang-ke conseguiu retratar em O Mundo, filme muito parecido com esse, mas muito melhor desenvolvido. Por fim, o filme ainda chega a um final questionável com sua solução para um mundo melhor tão simplista quanto mal formulada. 4/10

Não por acaso uma das várias citações de À Prova de Morte (algumas homenagens, outras reciclagens) é ao filme Maria Antonieta na capa de uma revista numa loja de um posto. Assim como o filme da sua ex-noiva Sofia Coppola, que utiliza-se de elementos modernos com clássicos, Tarantino também defende o anacronismo cinematográfico. Seu novo filme é revivescência cinema B dos anos 70, mas ao mesmo tempo é pura vanguarda do novo século.
Tarantino estrutura a ação do filme sobre um esqueleto argumental claro e pouco (ou nada) ambíguo, cuja inexistente dramaturgia é perfeitamente controlada para a ebulição do final. Tarantino evita (pela primeira vez, é bom deixar registrado) qualquer desculpa intelectual na sua simplicidade expositiva que chega magistralmente a mais básica abstração, transformando À Prova de Morte assumidamente num instrumento de prazer puramente masturbatório e (aparentemente?) vazio, mas, indiscutivelmente, emocional. Falando em masturbação, a interpretação mais óbvia que se pode fazer do filme é mesmo a sexual. Apoiando-se nas leis básicas do sexo, dominação e submissão, Tarantino estabelece uma relação entre as colisões e a foda, que fica evidente na teoria freudiana do xerife sobre o acidente e as implicações sexuais nele subentendidas, lembrando nesse ponto a obra-prima de David Cronenberg, Crash. Esse hedonismo sexual é explicitado logo nos primeiros planos, com pés femininos e closes em bundas. Tarantino filma suas mulheres com fixação quase pervertida, aumentando a tensão sexual durante todo filme. É um jogo entre sexualidades básicas, que desencadeia numa troca de posições: o ativo da primeira parte vira o passivo da segunda parte nas mãos das verdadeiras heroínas.
Há uma nítida separação entre as duas partes, porém, apesar de serem divergentes, se misturam e definem a maneira como Tarantino (e os cinéfilos em geral) vê o cinema: a magia do cinema clássico, artesanal e primitivo (com seus erros perdoáveis) e a experimentação do cinema levado ao limite com seus excessos (de diálogos, de cenas). Tudo visto com um olhar sarcástico e crítico ao próprio filme bem como ao cinema em geral, tornando-se irresistível para Tarantino ser um pouco mais narcisista dessa vez e estabelecer um diálogo intertextual com sua própria filmografia (o carro da Pussycats Dolls, "Twisted Nerve" como toque de celular, o travelling de 360 graus ao redor da mesa do bar, participação de Zoe Bell, dublê de Uma Thurman em Kill Bill, enfim, são dezenas).

Para terminar, como não devia deixar de fazer, Tarantino recupera um ator em decadência (como já fizera com Travolta, Pam Grier e David Carradine). Dessa vez é Kurt Russell que se reinventa como ator como um autêntico psicopata anti-herói saído de um filme de Sam Peckinpah, mas (também) adaptado aos novos tempos. Sem dúvida é o personagem mais triste de todo universo tarantinesco, objeto de desprezo e graça. Se na primeira parte a vitória é da nostalgia de tipos durões como ele, a segunda é uma luta entre o passado e o futuro, entre o antigo cinema e o novo cinema. 9,5/10

Marcadores: , , , , , , , , ,